A pandemia da covid-19 se transformou em pesadelo para muita gente no momento em que a sociedade precisa lidar com problemas de saúde, incertezas econômicas, isolamento social, entre outros desafios. A conclusão não é apenas empírica. Estudo publicado na quinta-feira (1), na Frontiers in Psychology, revela que mais da metade dos sonhos ruins está relacionada ao novo coronavírus.
Segundo os cientistas, imagens e associações de ideias similares estão presentes em vários dos sonhos estudados, revelando uma espécie de "inconsciente coletivo" da pandemia. Cientistas brasileiros que também estudam o efeito da covid-19 nos sonhos confirmam a mudança na temática dos pesadelos durante a quarentena. Neste novo estudo, pesquisadores estudaram o conteúdo dos sonhos de 800 pessoas. Mais da metade dos pesadelos relatados tinha relação com a doença ou o isolamento.
"Ficamos muito impressionados de observar conteúdos e associações nos sonhos ruins de cada um dos participantes do estudo, o que reflete o ambiente apocalíptico do lockdown imposto pela covid-19", afirmou a principal autora do estudo, Anu-Katriina Pesonen, chefe do grupo de pesquisa do sono e da mente da Universidade de Helsinque. "Os resultados nos permitem especular que os sonhos, em circunstâncias extremas, compartilham imagens e ideias parecidas, indicando uma espécie de inconsciente coletivo."
A neurocientista brasileira Julie Weingartner, do Instituto DOr de Pesquisa (Idor), que não está participando de nenhum estudo sobre sonhos, contou que nunca teve tantos pesadelos quanto no período de quarentena. Dois deles são recorrentes. "O que mais se repete é o que estou com amigos e, de repente, percebo que todo mundo está sem máscara e bate aquele desespero", contou Julie. "Um outro que se repete muito é o que vejo um amigo muito querido e nos abraçamos bem forte, aquela sensação maravilhosa. Aí de repente me lembro que não poderia estar fazendo aquilo."
Curiosamente são dois dos temas mais frequentes constatados entre os finlandeses. Os cientistas transcreveram o conteúdo dos sonhos, selecionando as palavras mais frequentes em cada um deles, alimentando um algoritmo que selecionou as associações mais frequentes. A inteligência artificial as dividiu em 33 grupos temáticos. Vinte deles foram classificados como pesadelos, dos quais 55% estavam relacionados à pandemia.
Entre os temas mais recorrentes estão falhas no distanciamento social, ausência de equipamentos de proteção, contágio e situações apocalípticas. No grupo de falhas no distanciamento social, por exemplo, estavam os sonhos em que as pessoas se abraçavam ou apareciam em meio a grandes aglomerações, sem manter a distância adequada. "Nossos sonhos são influenciados por nosso subconsciente, revelam nossos desejos e medos mais profundos", constatou Julie Weingartner.
O estudo também ofereceu alguns dados sobre os padrões do sono e os níveis de estresse dos entrevistados durante o lockdown. Por exemplo, mais da metade dos voluntários revelou estar dormindo mais durante a quarentena, embora 10% tenham mais dificuldade de pegar no sono. Mais de um quarto dos pesquisados revelou ter pesadelos com mais frequência.
Mais da metade dos entrevistados reportou um aumento nos níveis de estresse – o que está diretamente relacionado à ocorrência de pesadelos. Os mais estressados foram os que mais relataram pesadelos com a pandemia. Por causa disso, a pesquisa oferece informações valiosas para os especialistas que estão tentando avaliar o impacto da pandemia na saúde mental da população. "Pesadelos recorrentes e intensos podem estar relacionados ao estresse pós-traumático", explicou a cientista finlandesa. "O conteúdo dos sonhos não é totalmente aleatório e pode ser importante para a compreensão das experiências de estresse, trauma e ansiedade."
Um estudo brasileiro da UFRN, pré-aprovado para publicação na MedRxiv em maio, acompanhou 42 pessoas durante o primeiro mês de isolamento, reunindo relatos de sonhos. O resultado revelou similaridades no conteúdo semântico e emocional. A proporção de palavras relacionadas à raiva e à tristeza foi bem mais alta nos sonhos pandêmicos. Bem como a presença de termos como "contaminação" e "desinfecção". A tendência de os pesadelos apresentarem conteúdos semelhantes já havia sido constatada em períodos extremos, como nas semanas que se seguiram aos atentados de 11 de setembro e durante a 2.ª Guerra Mundial. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.