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No entanto, Wolf adverte que essa habilidade de leitura profunda está sob risco, por causa dos hábitos digitais modernos – como apenas "passar os olhos" em textos online.
Leitura não é algo inato, e sim um conjunto de circuitos cerebrais que os humanos desenvolveram, afirma cientista Maryanne Wolf

Paula Adamo IdoetaDa BBC News Brasil em Londres

Enquanto você lê esta reportagem, ativa circuitos cerebrais que nós, seres humanos, levamos milhares de anos para desenvolver: os da leitura.

Decodificar letras, símbolos e significados transformou o nosso cérebro e nossa sociedade, e criou algo que não existia quando a nossa espécie surgiu.

“Nós pensamos na linguagem como algo natural, e deduzimos que a língua escrita é algo natural também. Mas não é, nem um pouco”, afirma à BBC News Brasil Maryanne Wolf, cientista cognitiva, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de O Cérebro Leitor (editora Contexto).

“E quanto mais você lê, mais esse sistema molda o cérebro, de modo cumulativo. Dá a ele todo um conhecimento, toda uma construção de processos que eu chamo de leitura profunda.”

No entanto, Wolf adverte que essa habilidade de leitura profunda está sob risco, por causa dos hábitos digitais modernos – como apenas “passar os olhos” em textos online.

Repertório desde a primeira infância, com esse aprendizado tão sofisticado começa antes da alfabetização formal: já quando os bebês ouvem história no colo dos adultos ou veem livros com figuras – mesmo que ainda não consigam decifrar as letras.

Para Wolf, isso já cria o terreno para a criança desenvolver habilidades emocionais importantes, como a empatia e a capacidade de se colocar no lugar de um personagem da história.

Em contrapartida, a negligência à leitura tem um efeito contrário – e bastante prejudicial – ao cérebro infantil.

Capacidade de leitura profunda se perdendo, uma grande preocupação da pesquisadora é com o que ela chama de “crise de leitura”.

O fato de que ler não é uma capacidade inata dos humanos, e sim algo adquirido e aperfeiçoado ao longo de milênios, significa, segundo Wolf, que essas habilidades podem ser atrofiadas ou lentamente perdidas.

Pensa em como você lê na tela do celular. Por acaso é uma passada de olhos, fazendo scroll na tela, e interrompendo a cada notificação do WhatsApp? Isso é cada vez mais comum.

O problema, segundo Wolf, é que se limitar a essa leitura superficial pode prejudicar nossa capacidade de imersão num texto, de entender argumentos complexos, de fazer uma análise crítica, de identificar notícias falsas ou, simplesmente, de mergulhar em um livro bem escrito.

“Quando você apenas passa o olho no texto, segundo estudos, mostram que você absorve apenas uma amostra do que está escrito”, diz ela. “E você não perde apenas dados ou fatos absolutos, mas também todo o propósito do que o escritor está tentando instigar – que é a beleza da linguagem.”

Wolf cita pesquisas acadêmicas indicando, por exemplo, que crianças que usam o celular desde os primeiros anos de vida podem ter um desempenho pior na escola depois.

Além disso, “num cérebro que é constantemente distraído e hiper-estimulado, os neurotransmissores começam a desejar estímulos em um intervalo cada vez mais curto. Daí é comum que essas crianças, quando estão off-line, se sintam muito entediadas.”

E tampouco sobra tempo para a leitura de lazer, “o que significa que (muitas crianças e adolescentes) não vão desenvolver essa capacidade de leitura profunda”.

“O antídoto para isso é o mais simples e bonito o possível: ter nossas crianças imersas na leitura, e ter uma vida de leitor. Ajudá-los a entender que (a leitura) pode ser um santuário onde elas podem pensar por conta própria”, conclui Wolf.

“Mas é um antídoto duro, no sentido de que exige que pais e professores ajudem. Eles têm de servir de modelo. Eles têm de ler para as crianças. E eles próprios precisam desenvolver o gosto pela leitura.”

Dislexia e dificuldades de leitura, outro ponto de atenção são as muitas crianças com dificuldades de leitura, como a dislexia – uma condição que, segundo diferentes estimativas, atinge de 4% a 10% da população mundial.

A dislexia é caracterizada por entraves de aprendizado de leitura e ortografia. Crianças com dislexia costumam ter dificuldade também em distinguir sons e fonemas dentro das palavras, ou em recordar informações que veem e escutam.

Maryanne Wolf tem um filho disléxico e dirige um centro de estudos sobre a dislexia na Universidade da Califórnia. E lamenta que tantas crianças com essa característica sejam taxadas de incapazes ou preguiçosas, em vez de diagnosticadas e ajudadas.

“O enredo da história da dislexia poderia ser contado com pequenas variações em todo o mundo”, escreve Wolf em O Cérebro Leitor.

“Uma criança inteligente, digamos um menino, chega à escola cheio de vida e entusiasmo; se esforça para aprender a ler como todo mundo, mas, diferentemente de todos, parece que não conseguirá aprender; seus pais lhe dizem para se esforçar mais um pouco; os professores lhe dizem que ‘não está trabalhando com todo seu potencial’; alguns colegas o chamam de ‘retardado’, ‘idiota’; recebe a mensagem avassaladora de que não terá muito valor; e assim, essa criança deixa a escola sem qualquer traço do entusiasmo inicial de quando entrou”, afirma ela.

“Já conhecemos muito, mas muito ainda precisa ser explicado na história e nos mistérios da dislexia”, diz Wolf.

“Em muitos casos, o cérebro nunca atinge os estágios mais elevados de desenvolvimento da leitura, pois leva muito tempo para conectar as primeiras partes do processo. Muitas crianças com dislexia literalmente não têm tempo para processar a informação escrita.”o mesmo tempo, muitas pessoas com dislexia são consideradas excepcionalmente criativas e inteligentes.

Inclusive existe o debate de que grandes gênios da humanidade, como Leonardo da Vinci, Thomas Edison e Albert Einstein possam ter sido disléxicos.

Da Vinci, por exemplo, tinha dificuldade com a leitura e às vezes escrevia da direita pra esquerda, e com erros ortográficos e sintáticos.

“A maioria das pessoas com dislexia não possui talentos espetaculares como os de Edison ou Leonardo, mas parece haver um grande número de pessoas portadoras de dislexia extraordinariamente talentosas”, escreve Wolf.

Além disso, hoje já existem muitas estratégias para ajudar crianças com essa e outras dificuldades de leitura.

“O principal é tentar ajudar as crianças a descobrirem a sensação de terem um santuário de leitura”, afirma Wolf à BBC News Brasil. “No começo, é claro, as histórias são muito simples e com o tempo vão ficando mais complexas. Mas sempre enfatizando habilidades como capacidade de dedução, empatia e pensar por conta própria.”

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